Filosofía

Published on octubre 7th, 2021 | by EcoPolítica

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Hannah Arendt: o animal político no século XXI

Por Jorge Pinto [1]

Artículo original publicado en inglés en el nº 21 del Green European Journal
Artículo en portugués traducido por el autor para su blog y publicado en EcoPolítica con su consentimiento

Desiludida com a democracia representativa que permitiu o surgimento do nacional-socialismo, e inspirada pela polis da Grécia Antiga, a teórica política Hannah Arendt acreditava firmemente no poder da democracia direta como modo de concretizar a verdadeira liberdade política. Embora este modelo de participação pareça muito distante da realidade hoje, os seus trabalhos podem dar algumas pistas sobre o revigoramento da democracia numa época em que a confiança nas instituições políticas está a corroer-se, a extrema direita está mais arrojada e enfrentamos o colapso ecológico.

Hannah Arendt (1906-1975) foi, sem dúvida, uma das pensadoras mais interessantes do século XX. Nascida numa família judia alemã, o terror nazi forçou Arendt a fugir de seu país natal em 1933, tendo a partir de então aplicado o seu conhecimento filosófico na tentativa de compreensão dos eventos políticos e históricos de seu tempo. Não sendo uma filósofa verde, ou sequer uma percursora do pensamento ecológico, Arendt influenciou, ainda assim, muitos verdes. O seu trabalho sobre participação cívica e desobediência civil – importante para o pensamento e a prática ecológica – pode inspirar a urgente e necessária discussão sobre o futuro da democracia num planeta ecologicamente sustentável.

Arendt via na participação cívica uma condição essencial não só para a salvaguarda e promoção do bem comum, mas também para a sua realização enquanto ser humano. A preservação da democracia baseava-se, portanto, na preservação da liberdade, que só poderia ser assegurada pela participação direta nas questões comuns – o ser humano transformado no animal político que deve ser a fim de se realizar.

É importante distinguir o ramo aristotélico do republicanismo tal como seguido por Arendt do ramo neo-romano, atualmente mais popular. Enquanto o primeiro vê a participação como intrinsecamente boa e é, consequentemente, cético em relação à democracia representativa e ao Estado, o segundo argumenta que a participação cívica é importante, mas apenas de forma instrumental e como uma forma de garantir a independência de poder arbitrário ou incontrolado, seja este de terceiros (outros cidadãos, grupos ou empresas) ou o Estado. A colocação em prática da abordagem de Arendt nos dias de hoje enfrenta, portanto, o desafio adicional de ter que levar em conta o quão longe as sociedades atuais se encontram da polis da Grécia Antiga que ela tanto admirava.

Outra área da filosofia de Arendt interessante de ler quando falamos sobre a democracia é a desobediência civil. Para Arendt, a desobediência civil era uma questão de política, não de consciência ou moralidade. Assim, criticava Henry David Thoreau, um proeminente ensaísta do século XIX e defensor da desobediência civil: apesar de potencialmente ter boas razões para se recusar a pagar os seus impostos e, portanto, desobedecer à lei, ele fê-lo por motivos de moralidade e consciência. Como disse Thoreau, o cidadão não deve “entregar sua consciência ao legislador”. Arendt rejeitou essa abordagem por a ver como individualista. A consciência é “apolítica”, refletindo as próprias crenças de cada um, em vez de uma preocupação com a justiça comum. Ao priorizar a consciência individual, Thoreau fez da desobediência civil um assunto individual; Arendt, pelo contrário, afirmou que a desobediência civil deve ser uma questão coletiva.

Em vez de conflituantes, essas duas abordagens da desobediência civil podem, na verdade, ser complementares. De facto, este parece ser o caso dos atuais atos de desobediência civil com uma dimensão ecológica, como as ocupações das ZAD (Zona a Defender, do francês, zones à défendre), onde a desobediência ao nível da consciência individual encontra a desobediência política. A objeção, seja por uma questão de consciência ou como uma ação política comum, torna-se uma forma de aproximar cidadãos com o mesmo objetivo.

No entanto, como a própria Arendt reconhece, a desobediência civil por si só não é suficiente. Defender e promover a liberdade e a democracia exige uma ação positiva a favor (e não apenas contra) algo. Esse tipo de participação cívica serviria dois propósitos. O primeiro: a realização do cidadão como animal político, ou zoon politikon, para usar o termo aristotélico. E o segundo: uma expressão de preocupação pelo bem comum, garantindo a liberdade compartilhada e uma sociedade democrática. A participação é, então, intrinsecamente importante para o indivíduo e instrumentalmente importante para garantir a democracia e a liberdade de todos.

Os cidadãos, segundo Arendt, devem ir além dos interesses privados para atuar juntos em prol do bem comum. Expressam a sua cidadania promovendo a vita activa e participando em deliberações sobre o que é melhor para a sociedade. A participação pode assumir várias formas, como ser ativo em organizações da sociedade civil ou ONGs. Embora Arendt fosse talvez muito rígida na sua separação das esferas pública e privada e, é claro, preferisse a democracia direta à representativa, a sua teoria, no entanto, oferece pistas sobre como melhorar a democracia e a representação.

O que pode ser deduzido do trabalho de Arendt na década de 2020, marcada pela sobreposição das crises ecológicas, sociais, de saúde e democráticas? Arendt estimava a polis grega e a sua democracia direta, mas será realmente necessário abandonar o Estado e a democracia representativa? Atualmente, tal cenário parece pouco mais do que um exercício académico de imaginação. Mas isso não quer dizer que devemos esquivar-nos da necessária revisão do modo como a representação política é feita e de como a participação do cidadão pode ser melhorada e ampliada.

Apesar do ceticismo de Arendt, o Estado desempenha um papel importante na promoção de mais democracia e participação. Isso torna-se particularmente crucial em tempos de colapso ecológico, onde a coordenação a um nível acima do local é imperativa. O Estado também é essencial para eliminar as barreiras estruturais à participação e dar poder os cidadãos, criando fóruns adequados e oferecendo a educação e recursos necessários.

Há pelo menos um caminho que oferece uma maneira de conciliar a democracia direta e representativa e as preocupações públicas e privadas: as assembleias de cidadania. Essas assembleias podem ser um órgão permanente trabalhando com a câmara de representantes eleitos ou um exercício único com objetivos específicos. Os participantes seriam selecionados aleatoriamente, de modo semelhante à seleção que era prática comum na Grécia Antiga tão querida a Arendt.

Uma série de questões surgem ao definir as assembleias de cidadania: se permanente, qual deve ser a duração do mandato? Se temporária com um objetivo fixo, quem pode convocar a criação de uma assembleia – apenas o Estado ou os cidadãos também? E, o mais importante de tudo, que grau de poder deve ser concedido às assembleias? Deveriam ser capazes de legislar, nomear ou rejeitar ministros, ou administrar parte do orçamento público? Todas essas questões provam a flexibilidade do conceito. As assembleias de cidadania oferecem um meio de reunir os cidadãos e de promover a deliberação comum. Essencialmente, elas são uma ferramenta profundamente republicana e prometem promover a democracia, a participação e um sentido de dever cívico.

Indo além da separação público-privada de Arendt, tais assembleias poderiam dar aos cidadãos um espaço no qual descobrir que as questões privadas também podem ser comuns e conceber maneiras de abordá-las que respeitem sua natureza pública e privada. Embora as assembleias de cidadania não respondam totalmente ao desejo de Arendt de democracia direta, elas têm o potencial de aprofundar fortemente a participação. Arendt não é, portanto, um guia a ser seguido cegamente, mas o seu republicanismo pode servir de inspiração para enfrentar os múltiplos desafios do século XXI. Frente a sistemas democráticos em dificuldades e ao colapso ecológico, aumentar a participação e dar mais poder aos cidadãos pode ser uma forma crucial de preservar a liberdade e defender o bem comum.


[1] Jorge Pinto es graduado en ingeniería ambiental por la Universidad de Oporto y doctor en filosofía social y política por la Universidad del Miño con una tesis sobre eco-republicanismo. Es además cofundador del partido político portugués LIVRE.

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